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Eles dizem que a casa agora pertence a ela. Os papéis estão assinados. As chaves são dela. Mas quando Elise chega ao pé da escada do sótão, ela não se sente dona da casa. Apenas o peso de uma promessa que fez há muito tempo. Uma promessa que seu tio a fez repetir em voz alta.

Ele havia lhe dito para ficar longe do sótão. Nunca, em nenhuma circunstância, ela deveria entrar lá. Não enquanto ele estivesse vivo. Não enquanto ela morasse lá. Ele nunca explicou o motivo. A porta estava sempre trancada, e ela nunca perguntou duas vezes. Algumas coisas não precisavam ser respondidas naquela época.

Mas agora a casa está vazia. Seu nome está no testamento. O sótão ainda está trancado, mas a chave está em sua mão. Ela não sabe o que espera encontrar. Alguma coisa. Nada. De qualquer forma, a sensação é de cruzar uma linha que ele desenhou com tinta permanente.

A casa cheirava a madeira molhada e papel velho. Mesmo antes de ela girar a chave, o cheiro encontrou seu caminho através das rachaduras na moldura da porta, entrando em sua garganta como algo familiar, mas há muito não dito.

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Elise hesitou na varanda, com os dedos em volta da chave, sua respiração visível no frio do início da primavera. A cidade não havia mudado muito em quinze anos. Os mesmos fios de eletricidade caídos, a mesma livraria fechada na esquina.

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Mas a casa, a do tio dela, havia mudado. Parecia pior do que ela se lembrava. O telhado se inclinava em um ângulo estranho agora, como se tivesse começado a suspirar de cansaço. Uma mancha preta de mofo se enrolava sob a janela do segundo andar.

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As ervas daninhas haviam engolido todo o jardim. Ninguém havia podado as rosas desde que ele havia morrido. Elise abriu a porta. As dobradiças rangeram. Essa parte era a mesma. Dentro da casa, partículas de poeira flutuavam como fantasmas entre as frestas de luz.

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A mobília não havia se movido um centímetro sequer. Sua velha poltrona reclinável de couro ainda estava sentada no meio da sala de estar, gasta e flácida. Um anel de xícara seco ainda manchava a mesa lateral. Era como entrar em uma memória que ainda não havia percebido que havia acabado.

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Ela colocou sua bolsa ao lado da porta e respirou fundo. O testamento tinha sido claro. A casa era dela agora, toda ela. O terreno, o conteúdo, o sótão. Seu nome, escrito em letras maiúsculas, como se o tio estivesse preocupado que os advogados pudessem esquecê-la de outra forma.

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Ela foi a única pessoa que ficou ao lado dele em seus momentos finais, cuidando dele e estando presente em cada visita ao hospital. E agora, a casa era dela. Quando tinha dez anos, ela perguntou uma vez sobre o pesado cadeado na porta do terceiro andar.

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Ele largou o chá com tanta força que ele caiu no chão e disse, sem levantar a voz: “Você nunca vai entrar aí. Não enquanto eu estiver vivo” Ela assentiu com a cabeça. Outras crianças tinham quartos curiosos e escadas secretas. Ela tinha avisos.

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Aos quatorze anos, ela tentou novamente, como se fosse uma piada: “O quê, você guarda corpos lá em cima?” Ele ficou olhando para ela por um longo momento e depois foi embora. Era assim que acontecia a maioria de suas discussões: ele se retirava para o silêncio e ela ficava sentada nele.

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Ela nunca mais perguntou. Os últimos dois anos tinham sido brutais. Seu emprego na cidade mal permitia o trabalho remoto, mas ela se esforçou para que isso acontecesse. Os fins de semana eram passados no quarto de hóspedes da casa em ruínas, cuidando de um homem que mal se lembrava de agradecê-la.

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Ele não tinha sido gentil, não de fato. De língua afiada, impaciente. Mas ele era dela, o único adulto que a acolheu depois que o acidente levou seus próprios pais. E, de sua própria maneira distorcida, ele se importava. Isso contava para alguma coisa, não é mesmo?

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O filho dele, Michael, tinha vindo uma vez. Apareceu sem avisar, com uma camisa elegante e sapatos caros, ficou aos pés da cama do hospital e perguntou a ela, não ao homem que o criou, como era a herança. Ela lhe disse para ir embora. Michael não foi ao funeral.

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Elise não dormiu bem naquela noite. A casa era silenciosa demais nos aspectos errados e barulhenta demais em outros, gemendo a cada mudança de estrutura, sussurrando correntes de ar pelo corredor. Ela havia se esquecido de como era dormir com tanto vazio ao seu redor.

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Até mesmo a cama rangia como se estivesse suspirando sob o peso da memória. Ela puxou as cobertas com mais força e ficou olhando para o teto até o amanhecer. No dia seguinte, ela fez uma lista: consertar o telhado, trocar a caldeira, limpar a despensa do andar de baixo, onde os ratos provavelmente ainda estavam.

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No meio da tarde, ela já havia desistido da lista. A pia do banheiro estava vazando, a luz do corredor do andar de cima acendia quando ela a ligava e algo nas paredes estava definitivamente vivo. A casa não estava apenas caindo aos pedaços. Estava desmoronando com intenção.

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Ela andou de cômodo em cômodo com um saco de lixo em uma das mãos, balançando a cabeça ao ver recibos antigos, fotografias enroladas, jornais amarelados e livros que há muito haviam perdido a lombada. Seu tio não havia jogado nada fora. Nunca. Era como se o passado estivesse enfiado em cada canto.

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Em um determinado momento, ela encontrou uma foto de si mesma aos 12 anos, sentada nos degraus da varanda, com um gato de cerâmica rachado no colo. Ele deve ter tirado a foto. Ela não se lembrava de ele ter tido uma câmera. Seu polegar passou sobre a foto, sem saber se deveria guardá-la ou jogá-la fora. Ela a guardou.

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No terceiro dia, a amargura começou a se instalar. Ele não havia deixado nenhuma carta. Nem uma. Nenhuma palavra final. Nenhuma explicação. Apenas a casa e uma chave do sótão. Um mês atrás, ela estava vivendo sua vida – uma vida apertada, é claro, mas uma vida com e-mails, aluguel, um sofá pequeno demais, jantares congelados e o silêncio que ela escolheu.

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Agora ela estava mergulhada em mofo, lutando contra uma fornalha da década de 1970 e se perguntando por que o único agradecimento que recebeu por anos de cuidados foi uma casa em ruínas e instruções vagas para não abrir o sótão “até que estivesse pronta” Pronta para o quê? Exposição ao mofo? Uma família de guaxinins?

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Ela odiava o fato de ainda querer respostas dele. Michael ligou no quinto dia. Ela quase não atendeu, mas o nome dele piscando no telefone despertou algo mesquinho nela. “Elise”, disse ele, com uma voz suave demais. “Imaginei que você ainda estivesse aí.”

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“Ainda? Você acha que eu já teria ido embora?”, ela retrucou. “Imaginei que você tivesse dado uma olhada por aí. Achei que você gostaria de… conversar. Sobre a propriedade”, ele perguntou, estranhamente educado. “Não há propriedade. Apenas um desastre de uma casa e um sótão trancado com cadeado.”

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“Certo”, disse ele. “O sótão. Você já se perguntou por que ele o trancou?” Ela ficou quieta. “Por quê?” “Eu não sei”, disse ele. “Mas sempre achei que não era para manter as pessoas do lado de fora. Era para esconder alguma coisa.” Ela não respondeu.

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“Elise, ele era um homem estranho. Você não acha estranho que ele tenha deixado tudo para você e nada para o próprio filho?” “Não”, disse ela. “Acho que é apropriado.” Ele riu, não gentilmente. “Eu só espero que você aproveite esse lugar que você acha que merece tanto.” Clique.

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Ela ficou olhando para a tela por um longo tempo depois que a ligação terminou, com o pulso batendo atrás dos olhos. Naquela noite, ela se sentou novamente na base da escada do sótão. A chave parecia mais pesada em sua mão. Ela não a abriu. Ainda não. No final da segunda semana, o cheiro estava em sua pele.

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Ela havia esfregado as paredes da cozinha, substituído a porta de um armário e retirado três sacos de lixo da empreiteira, mas isso não importava. O lugar inteiro ainda cheirava a isolamento velho, mofo e algo mais difícil de nomear.

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Talvez amargura. Talvez mágoa. Todos os dias ela dizia a si mesma que iria embora. Todos os dias ela não o fazia. Sempre havia algo para consertar. Algo a ser descoberto. Na manhã seguinte, Elise dirigiu até a cidade apenas para sentir o ar se movimentar de forma diferente.

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Ela tomou café em um lugar que não existia há quinze anos e sentou-se em um banco para observar as crianças correndo atrás dos pombos na praça. Seu telefone tocou com uma mensagem de texto de seu antigo chefe. “Você ainda está planejando voltar, certo? O RH está pedindo datas.”

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Ela não respondeu. Não sabia o que dizer. Ela tinha trinta e três anos. Não havia planejado isso. Não havia planejado nada, na verdade, exceto fazer a coisa certa. E agora “a coisa certa” a havia deixado sozinha em uma casa decadente, enterrada sob décadas de escolhas de outras pessoas, cansada demais para ficar com raiva e com raiva demais para sofrer.

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Naquela noite, ela acordou às 3h12 da manhã com algo que vagamente se assemelhava a passos logo acima dela. Medidos. Lentos. Ela se sentou, com a respiração suspensa. Esperou. Nada. Ela foi até o corredor e acendeu a luz. A lâmpada estourou, fazendo cair uma chuva de poeira do teto.

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No silêncio que se seguiu, ela olhou para a porta do sótão. Ainda trancada. Ainda esperando. Michael apareceu em uma terça-feira. Sem telefonema. Nenhum aviso. Apenas uma batida na porta da frente que parecia muito alta para uma casa que havia passado tanto tempo sem visitas.

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Elise limpou as mãos na calça jeans e abriu a porta. Ele se encostou na moldura da porta como se fosse o dono dela, como se não tivessem se passado vinte anos desde a última vez em que esteve ali. “Uau”, disse ele, olhando para ela. “Parece pior do que eu me lembrava.” Ela não respondeu. Apenas ficou olhando até que ele limpou a garganta.

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“Eu estava na cidade”, ele ofereceu. “Pensei em passar por aqui. Prestar minhas homenagens”, disse ele com um sorriso presunçoso. “Você perdeu o funeral” Ele deu de ombros. “Estou aqui agora.” Ela não o convidou para entrar, mas ele passou pela soleira da porta mesmo assim.

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Ela observou os olhos dele percorrerem os destroços, o papel de parede amarelado e descascando pelas costuras, as tábuas do assoalho caídas, o contorno úmido que se espalhava perto do teto. “Jesus”, ele murmurou. “Ele realmente deixou apodrecer, não foi?”

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“Ele estava morrendo”, respondeu Elise. “Sim, e você foi o sortudo que teve que limpar o que aconteceu.” Elise estreitou os olhos. “É isso que você acha que foi? Sorte?” Michael sorriu, mas não havia humor nisso. “Acho que você era a única que ainda estava sob o feitiço dele.”

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Eles ficaram na sala de estar. “Você não o procurou quando ele estava vivo”, disse ela. “Nem uma vez.” Isso tirou o sorriso do rosto dele: “Eu fiz o que tinha que fazer. Eu saí.” Elise apontou para ele: “Você fugiu” Ele não negou.

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Apenas cruzou os braços e virou a cabeça para o teto. “Ele já lhe disse por que trancou o sótão?” “Eu perguntei a ele uma vez”, continuou Michael. “Quando eu era criança. Ele me deu um tapa tão forte que não consegui ouvir pelo ouvido esquerdo por dois dias.”

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Elise não disse nada. “Você realmente não sabe o que há lá em cima?”, ele perguntou. “Não.” Ela respondeu. “Nem mesmo curiosa?” Michael perguntou, tentando arrancar algo de Elise. “É claro que estou curiosa”, ela retrucou. “Mas ele me disse para não abrir.”

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Michael riu, seco e amargo. “E você ouviu. Sempre o bom soldadinho” Ela se aproximou. “Você não tem o direito de estar aqui.” Michael também se aproximou: “Eu tenho todo o direito. Ele era meu pai”

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“Ele era um pai apenas em biologia. Ele não falava sobre você. Nenhuma vez nos últimos cinco anos.” Isso o calou. Michael foi em direção à base da escada do sótão. “Ainda está trancada?”, ele perguntou. Ela não respondeu. Ele passou a mão pelo corrimão, com os dedos arrastando poeira.

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“Você já se perguntou se ele estava escondendo algo de você? Não para protegê-la, mas para puni-la.” “Eu não estou fazendo isso.” “Talvez ele quisesse ter certeza de que ninguém descobriria o que ele realmente era.” “Eu disse…” Michael se virou, com a voz subitamente baixa.

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“Você acha que é especial porque limpou a boca dele e trocou os lençóis? Ele apenas usou você. Da mesma forma que usou todo mundo. Você foi apenas a única que ficou tempo suficiente para herdar a bagunça.”

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As mãos de Elise se fecharam em punhos. Ele olhou para ela como se tivesse pena dela. “Só estou dizendo que, se você vai limpar tudo depois dele, talvez seja hora de limpar tudo.” Ele acenou com a cabeça em direção ao sótão. Depois, foi para a varanda fumar um cigarro.

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Eles mal se falaram pelo resto da tarde. Ela fez chá. Ele o bebeu como se fosse uma oferta de paz. Eles evitaram contato visual até que o silêncio se tornou algo tolerável. Ao anoitecer, ela estava novamente na base da escada do sótão, com a chave na mão.

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Ele se juntou a ela sem perguntar. “Você vai mesmo fazer isso?”, perguntou ele. “Acho que sim.” Michael olhou para a chave que ela estava segurando, ele queria ser a pessoa a abrir o cadeado. “Se importa se eu…?” Ela assentiu com a cabeça. Ele não lhe agradeceu.

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A chave girou com um clique metálico seco. Por um segundo, nada aconteceu. A porta não se abriu dramaticamente. Ficou ali parada, como se também tivesse se esquecido de como se mover. Então ela empurrou. A porta se abriu com um sopro de ar mofado e viciado.

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Michael tentou alcançar o interruptor de luz lá dentro, mas ele não funcionou. “Já era de se esperar.” Ele sacou o celular e ligou a lanterna. Elise seguiu logo atrás, com a mão tocando a moldura da porta ao entrar no sótão pela primeira vez em sua vida.

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O ambiente era desanimador. A poeira se agarrava a tudo como se tivesse sido pintada. A única janela pequena na parede mais distante estava rachada e manchada de sujeira, deixando entrar um fio de luz cinza. Havia sacos de lixo, pelo menos dez, agrupados no canto mais distante, alguns rasgados, com o conteúdo se espalhando como intestinos: jornais velhos, tapetes enrolados, o que parecia ser um ventilador quebrado.

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Uma poltrona comida por traças estava encostada em um guarda-roupa cujas portas haviam se aberto com o tempo. Uma estrutura de cama enferrujada. Um espelho rachado. Teias de aranha enroladas como se fossem panos. Michael torceu o nariz. “É isso?” Elise não disse nada.

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Ela caminhou lentamente pela bagunça, procurando por algo, qualquer coisa, que pudesse justificar todo o segredo. Todo o acúmulo. Mas não havia nada que valesse a pena. Apenas lixo. Apenas o passado, apodrecendo nas vigas. Michael chutou um dos sacos de lixo.

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“Você acha que isso foi uma piada? Como se ele quisesse que você perdesse seu tempo?”, ele perguntou, seu sorriso presunçoso voltando. “Eu não sei.” Ele apontou sua luz para uma pilha de caixas mofadas. “Isso é lixo. Ele a fez esperar anos por isso?”

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A garganta de Elise ficou apertada. “Ele nunca disse que havia algo aqui em cima. Só me disse para não vir.” Michael zombou. “É claro que ele disse. É assim que ele trabalha. Colocava algo na sua frente e depois punia você por querer.”

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Ela se virou para ele, subitamente incisiva. “Você não o conhecia.” Michael fez uma careta: “Eu conhecia o suficiente” Eles ficaram ali, cercados pela morte lenta do papel e da madeira. Elise respirou fundo. O sótão cheirava a mofo e isolamento e talvez um traço de colônia antiga, como o último fantasma de um homem que nunca viveu plenamente no mundo como os outros viviam.

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Michael parecia entediado agora. A curiosidade havia desaparecido. O mistério se esvaziou. Ele murmurou algo sobre isso ser uma perda de tempo e começou a descer as escadas. Elise ficou para trás, ajoelhando-se perto do saco de lixo mais distante.

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Ela o abriu com cuidado, sem esperar nada. Talvez nem mesmo esperasse. Mas, lá dentro, encontrou uma caixa. Pequena. De madeira. Fechada com barbante. Quando Elise desceu do sótão, Michael já estava pegando suas chaves.

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“Acho que foi isso”, disse ele sem rodeios. “Sua grande recompensa” Ela não respondeu. Ele parou na porta, olhando para ela com os olhos arregalados. “Você vai ficar aqui?” “Não sei.” Ele assentiu lentamente com a cabeça. “Bem. Boa sorte com isso.” Ele não ofereceu um abraço. Não apertou a mão dela.

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Apenas saiu, com a porta de tela batendo suavemente atrás dele. Ela observou pela janela da frente enquanto ele entrava no carro e dava ré na entrada de cascalho sem olhar para trás. Por um momento, o silêncio que se seguiu pareceu definitivo.

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Como o fim de uma conversa longa e feia. Ela não voltou para o sótão imediatamente. Sentou-se na cozinha com uma xícara de chá frio e ficou olhando para a caixa que havia trazido. Pequena, simples e amarrada com barbante fino. Ela poderia conter qualquer coisa: cartas antigas, insetos mortos, uma pegadinha.

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Algo em seu íntimo esperava que confetes saíssem voando quando ela a abrisse, a última piada de seu tio. Mas quando ela desfez o cordão e levantou a tampa, não havia nenhuma piada. Apenas uma pilha de envelopes. Todos marcados com a mesma caligrafia cuidadosa: “Para Elise – 10 anos” “Para Elise – 17 anos” “Para Elise – Quando você se sentir presa” “Para Elise – Depois que eu for embora” Sua respiração ficou presa.

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Alguns estavam lacrados. Outros haviam sido abertos e lacrados novamente. Um deles tinha um saquinho de chá seco dentro, junto com uma única frase escrita em tinta azul: “Você gostava desse tipo. Eu o mantive na prateleira mesmo quando você parou de me visitar” Ela virou os envelopes em suas mãos, com o coração batendo forte, sem saber por onde começar. Por fim, ela abriu o envelope com o título “After I’m Gone”

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Não demorou muito. “Sei que você vai ficar com raiva. Talvez eu mereça isso. Talvez eu não mereça. Mas eu não podia deixar nada às claras, não com a forma como eles trataram você. Especialmente o Michael. Ele teria destruído tudo e vendido em poucos dias. Esta casa já teria desaparecido.”

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“O sótão era o único lugar onde eu poderia esconder algo para você e ter certeza de que você esperaria o tempo suficiente para merecê-lo ou para decidir se ainda o queria. Se você está lendo isso, você ficou. Isso é mais do que eu poderia esperar. Desculpe-me por não saber como agradecer. Nunca fui bom nisso. Mas você foi a única pessoa que ficou.”

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“Então, tudo o que eu tinha, tudo o que importava, é seu. Eu só queria ter dito isso em voz alta quando pude.” Sem assinatura. Sem “amor” Mas, ainda assim, foi como uma mão em seu ombro, quente e pesada. Ela não chorou. Não imediatamente.

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Atrás dos móveis rasgados, ela encontrou uma segunda caixa, esta escondida atrás de um painel de parede falso. Dentro dela havia documentos: certificados antigos, ações, extratos bancários em seu nome. Ele havia transferido as coisas discretamente ao longo dos anos.

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A maioria era modesta: títulos, poupanças, uma conta modesta em um banco local, mas uma pasta continha a escritura de um terreno do qual ela nunca tinha ouvido falar, em uma cidade de dois estados diferentes. Ao lado dela havia um post-it: “A vista para o lago sempre foi sua favorita” Ela se sentou sobre os calcanhares, a poeira mordendo sua garganta, o peso de tudo isso se instalando.

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Elise deixou as caixas intocadas por um dia. Ela as empilhou ordenadamente no canto da sala de estar, não escondidas, mas não prontas para serem vistas novamente. Como se fossem convidados que ela não sabia bem como receber. Em vez disso, ela limpou.

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Não de uma forma esperançosa, do tipo “vamos tornar esse lugar meu”, mas mecanicamente. Ela esfregou os azulejos da cozinha até os nós dos dedos ficarem vermelhos. Jogou fora uma gaveta cheia de tupperwares deformados, lavou cortinas que se desintegraram na máquina, aspirou a poeira que parecia nunca desaparecer.

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A casa lutava contra ela a cada passo do caminho. Um cano estourou embaixo da pia. O disjuntor disparou duas vezes. Um pássaro morreu na chaminé, deixando um cheiro azedo que não saía. Toda vez que ela pensava no sótão, um sentimento diferente tomava conta dela. Gratidão. Raiva. Culpa. Alívio. Amargura. Repetição.

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Naquela noite, ela se sentou nos degraus dos fundos com uma cerveja e ficou olhando para o quintal; coberto de vegetação, emaranhado, selvagem de uma forma que não havia sido quando ela era criança. Em algum lugar, sob tudo aquilo, havia um jardim. Ela se lembrava de ter ajudado a plantá-lo uma vez, suas mãos pequenas cavando a terra enquanto seu tio murmurava sobre espaçamento e exposição ao sol.

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Ele nunca a elogiou. Não diretamente. Mas no dia seguinte ele trouxe para casa um par de luvas de jardinagem do tamanho de uma criança. Ela ainda as tinha. Em algum lugar. Ela tomou um longo gole e deixou o frio se instalar em seu peito.

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De manhã, ela releu a carta. “Você foi o único que ficou.” Lá estava ele novamente, o peso da obrigação embrulhado em um elogio. Como se sua permanência fosse inevitável. Como se isso fosse amor. O que ela queria era que ele lhe dissesse que não era necessário. Que ela poderia ter ido embora e ainda assim ser amada.

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Mas ele não era assim. Ela entendia isso agora. Não o perdoava, exatamente. Mas entendia. E em algum lugar, enterrado sob todo o ressentimento, ela sabia que ele havia tentado. À sua maneira. Da única maneira que ele conhecia.

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Ela passou o resto da tarde catalogando o conteúdo das caixas. A escritura do terreno era verdadeira, um pequeno lote à beira de um lago no interior do estado de Nova York, aparentemente intocado por mais de uma década. As contas bancárias eram modestas, mas estáveis. O suficiente para consertar este lugar, se ela quisesse. O suficiente para ir embora, se não quisesse.

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O que mais a surpreendeu foi o caderno no fundo de uma caixa. Apenas o nome dela na capa. Dentro havia páginas de esboços. Desenhos da casa. Do jardim. Dela. Não eram bons desenhos, com linhas trêmulas e sombreamento irregular, mas eram cuidadosos. Atenciosos. Havia uma anotação embaixo de um deles: “12 anos. Elise adormeceu lá fora novamente. Eu não a acordei. Ela parece tranquila.”

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Ela passou os dedos sobre as linhas de lápis. Sua garganta doía. Ele a tinha visto. Só que nunca lhe disse que estava olhando. Naquela noite, ela não sonhou. Quando acordou, a casa estava silenciosa, não vazia, mas não mais resistindo a ela. Ela ficou no corredor do sótão, com a porta ainda aberta, o cheiro de poeira e do tempo descendo as escadas.

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Ela podia ficar. Poderia ir embora. Mas, pela primeira vez, parecia que a escolha era dela. Na manhã seguinte, Elise acordou antes do nascer do sol. A casa estava quieta. Nenhum gemido nas tábuas do assoalho, nenhum vento batendo nas persianas. Apenas a luz entrando suavemente pelas cortinas, como se o mundo estivesse tentando não acordá-la cedo demais.

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Ela fez café e ficou descalça na cozinha, olhando para o quintal. A neblina estava se dissipando. Ela pensou no sótão. As caixas. O peso de tudo isso. E como, de alguma forma, começou a se sentir mais leve. Não porque algo tivesse mudado, mas porque ela finalmente havia olhado.

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